Na região sul da Morávia, na República Tcheca, uma pequena escultura de marfim de mamute, com apenas 4,8 cm de altura, carrega um segredo que remonta a mais de 24.000 anos: ela é o retrato mais antigo conhecido de um ser humano, revelando não apenas a habilidade artística dos nossos ancestrais, mas também a complexidade do pensamento e das relações sociais daquela época. Vamos explorar essa fascinante descoberta e seu contexto, que lança uma luz sobre a vida no período Paleolítico Superior.
O que é o retrato de Dolní Vĕstonice?

A escultura, descoberta nas décadas de 1920, é uma pequena cabeça esculpida a partir de marfim de mamute, com apenas 4,8 cm de altura e 2,4 cm de largura. Embora a peça seja de tamanho reduzido, sua importância é imensurável. Trata-se da mais antiga representação conhecida de um rosto humano, datando aproximadamente de 24.000 a 26.000 a.C., um feito artístico que nos conecta diretamente aos nossos antepassados.
Onde e quando foi feita?

Esta escultura foi encontrada no sítio arqueológico de Dolní Vĕstonice, localizado na atual República Tcheca, na região da Morávia do Sul. Esse local é particularmente importante para os arqueólogos, pois contém uma riqueza de artefatos que datam do período Gravettiano (29.000 a 24.000 a.C.), um momento crucial na pré-história humana. Entre os artefatos, estão cerâmicas, ferramentas de pedra, ossos esculpidos e até mesmo as primeiras cerâmicas assadas em fornos — uma das primeiras evidências do uso de fogueiras controladas para produção de objetos.
O significado do retrato

O retrato de Dolní Vĕstonice é uma obra única e detalhada. A cabeça esculpida apresenta características bem definidas, como olhos gravados, um queixo saliente e um nariz e boca levantados. O rosto esculpido sugere que a figura representada poderia ser uma mulher, e o penteado ou o uso de um chapéu é indicado por marcas de relevos na parte superior da cabeça. O mais impressionante, no entanto, é a individualização da face, ao contrário de outras esculturas do período que eram mais genéricas, como a famosa “Vênus de Vĕstonice”, que não possui traços faciais.
Esse retrato parece não ser uma simples figura simbólica ou decorativa, mas sim uma tentativa de capturar a essência de um indivíduo específico. Isto o torna, provavelmente, o primeiro retrato pessoal da história, algo surpreendente para uma época em que a representação de seres humanos ainda estava em seus estágios iniciais.
A conexão com os habitantes de Dolní Vĕstonice

O sítio de Dolní Vĕstonice não é apenas famoso por seus artefatos, mas também pelas descobertas feitas sobre os habitantes que ali viveram. No final da década de 1940, durante escavações no local, os arqueólogos encontraram o esqueleto de uma mulher de meia-idade, enterrada com 10 dentes de raposa perfurados e coberta com ocre vermelho. Estudos forenses recentes, feitos em 2018, reconstruíram seu rosto a partir do crânio, revelando semelhanças com a escultura de marfim, especialmente no formato assimétrico dos olhos, uma característica peculiar que também está presente na escultura.
Essa conexão entre a escultura e a mulher enterrada em Dolní Vĕstonice reforça a ideia de que a arte naquele período não era apenas decorativa, mas também desempenhava um papel social e cultural profundo. É possível que a escultura de marfim tenha sido feita em homenagem a essa mulher ou de algum modo estivesse relacionada a ela.
A importância de Dolní Vĕstonice na arqueologia

Além do retrato, o sítio de Dolní Vĕstonice é notável pela sua abundância de artefatos do período Gravettiano, uma das culturas mais avançadas do Paleolítico Superior. A descoberta da cerâmica assada em fornos neste local coloca Dolní Vĕstonice entre os primeiros centros de produção de cerâmica do mundo. A complexidade das ferramentas e objetos encontrados ali revela uma sociedade que já possuía uma organização sofisticada e um nível avançado de habilidades manuais.
Essa riqueza de artefatos permite aos arqueólogos e antropólogos reconstruir um pouco da vida diária desses antigos habitantes da Europa Central, que viviam principalmente da caça, pesca e coleta. Além disso, a diversidade dos artefatos sugere que havia uma vida comunitária bem estabelecida, onde práticas religiosas, artísticas e sociais se entrelaçavam.
O legado do retrato de Dolní Vĕstonice

O retrato esculpido em marfim de mamute de Dolní Vĕstonice permanece um dos mais fascinantes legados da humanidade. Ele nos mostra não apenas as capacidades artísticas e tecnológicas dos homens e mulheres do Paleolítico Superior, mas também nos dá uma visão única de como nossos ancestrais viam a identidade e a individualidade.
A escultura é um testemunho da nossa evolução cultural e das complexas relações sociais que existiam há mais de 24.000 anos. Ela está atualmente exposta no Pavilhão Antropológico, em Brno, na República Tcheca, onde continua a inspirar admiradores da história e da arte. Este pequeno e intrincado pedaço de marfim, esculpido com ferramentas rudimentares, traz consigo um grande poder: o poder de nos conectar com nossos antepassados mais distantes e revelar uma faceta de sua vida que, até então, parecia estar além do nosso alcance.
Conclusão
Dolní Vĕstonice não é apenas um sítio arqueológico, mas uma janela para o passado remoto da humanidade. A escultura de marfim de mamute é o elo entre nós e um tempo de caçadores e coletores, onde a arte e a expressão pessoal estavam apenas começando a se formar. A descoberta dessa figura esculpida, com todos os seus detalhes minuciosos, mostra-nos que, mesmo há 24.000 anos, a busca pela identidade e pelo reconhecimento do indivíduo já fazia parte de nossas vidas.
A história da humanidade, assim como a arte, é contínua e cheia de surpresas. E, em lugares como Dolní Vĕstonice, essas surpresas continuam a nos ensinar sobre o longo caminho que percorremos desde os primeiros traços da nossa existência até o que somos hoje.